Boletim de Ocorrência
Venho, por meio desta, registrar uma série de furtos dos quais estou sendo vítima nas últimas décadas.
Não mencionarei o fato de terem levado o principal, meus 17 anos, visto que naquela ocasião eu julgava aprovar a perda, na ansiedade de me tornar adulta. A denúncia em questão, portanto, se limitará às subtrações alheias à minha vontade e consciência, ou seja, aquilo que realmente constitui furto, roubo, extorsão, e, em conseqüência, crime.
Levaram-me muitas afirmações e negações, muitas interrogações, muitas exclamações, minha capacidade de me surpreender todos os dias.
Tiraram-me o privilégio de não saber dar respostas exatas.
Levaram-me a tranqüilidade de comer batatas fritas.
Levaram minha ambição de brincar de pique-bandeira.
Levaram-me a satisfação de receber cartas pelos Correios, com letras azuis manuscritas pertencentes aos seus remetentes, meus entes queridos.
Levaram meu bel-prazer de usar tranças e meu direito de usar minissaia, em troca de mais autocrítica.
Levaram meu pai, levaram minha mãe, levaram minha permissão de chorar por qualquer motivo que eu julgasse conveniente.
Levaram os bebês que eu tive e me devolveram filhos em idade adulta.
Levaram minha urgência. Minha leviandade. Minha imprudência. Parte considerável da minha saudável ignorância.
Substituíram a minha aflição brutal por outra, mais sutil e complicada.
Foram levando, um a um, minha vitrola, meu gravador de rolo, meu walkman, meu aparelho de VHS e meu CD player, rebaixando meus discos e fitas à condição de entulho, e, não contentes com isso, carregaram meu orgulho de ser uma pessoa up-to-date.
Levaram minha possibilidade de dirigir um jipe sem capota por aí pela cidade.
Levaram-me a faculdade de ler livro, jornal, ou revista, sem um par de óculos na cara.
Levaram minha certidão de nascimento e, em seu lugar, deixaram um papel amarelado caindo aos pedaços.
Levaram-me um grande número de crenças.
Levaram minha coragem de me alucinar madrugada adentro.
Recorrentemente estão me levando todos os dias seguintes às minhas poucas noites de farra.
Extorquiram meu sossego de flanar, pela rua ou pela mente.
Surrupiaram parte do meu fôlego, dos meus ímpetos, do meu fogo.
Levaram minha licença de ficar de bobeira.
O prejuízo já se tornou incalculável, o que, por si só, já justificaria a queixa pública, mas parece ser também irrecuperável. O principal objetivo desse relato, portanto, é o desabafo.
Não vou negar que me presentearam com diversas coisas novas, entre elas uma boa dose de paciência. Não gostei de algumas destas, deste saudosismo, por exemplo. Não incrimino alguém em especial pelos roubos, nem o tempo, nem a vida, e até agradeço à morte pelo favor de não ter chegado ainda, permitindo assim que tudo isso acontecesse.
Também não solicito indenização.
Só queria tudo de novo.
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