segunda-feira, 26 de abril de 2010

Quelé

Em 1965 fui morar na Rua Nélio Guimarães entre as Ruas Mal. Deodoro e Floriano Peixoto, no Alto da Boa Vista. Era um lugar ermo, um descampado em meio a fazendas.
A mudança foi repentina, e a casa não tinha muros. Numa tarde, a porta aberta da copa permitiu a entrada de uma vaca, procurando comida na mesa posta.
A Rua Airton Roxo, duas antes da Nélio Guimarães, era a última habitada. Na esquina da Rua Mal. Deodoro morava o Carlos Solera e sua penca de irmãos. No meio do quarteirão entre a Mal. Deodoro e a Sete de setembro morava o Dr. Onésio da Mota Cortez, pai do Camilo e do Getulio Vargas. Era jornalista e nunca tomava uma condução. Mesmo em idade avançada, quatro vezes por dia percorria a pé os 3 Kms. que separam sua casa do jornal “A Cidade”, onde assinava uma coluna sob o pseudônimo de “Zeca Camilo”.
Em frente ao Dr. Onésio veio morar o futuro Deputado Federal João Cunha.
Ao lado havia uma casa, e em seguida um terreno vazio onde Quelé acendia sua fogueira.
Quelé foi guarda noturno por muitos anos, até quando sua saúde permitiu. Milhares de madrugadas ao tempo e ao vento e à friagem minaram a saúde de seu forte corpo negro. Ele dizia que sua avó fora escrava. Em troca de alguns trocados, velava o sono dos moradores da rua. E assim, ganhando a vida, aos poucos a perdeu.
Quelé veio do campo, expulso pela mecanização das lavouras. Na cidade o preto velho só conseguiu ser guarda noite.
E se de cidades ele pouco sabia, em natureza era mestre, e da roça trouxe o costume de acender o fogo a noite. No inverno para espantar o frio, no verão para ter companhia nas longas noites de vigília, e sempre para esquentar a comida.
Como o homem gosta do fogo, as pessoas foram chegando a fogueira, primeiro os outros guardas, o Lambari, que contava ter certa vez tomado uma chuva de lambaris, o Zé Toco que não tinha uma das mãos, vivo até hoje, guarda noturno na esquina da Rua Floriano Peixoto com Altino Arantes. Sentavam-se ao fogo, esquentavam o jantar, comiam, e fumando, contavam “causos”. Depois vieram os moradores vizinhos, como o pai do Dr. Wagner Carlucci, que morava em frente, no início da noite, saber de Quelé se ia chover. Ele sempre acertava a previsão. Seu conhecimento baseava-se na observação, durante toda vida, mais de 80 anos talvez, ele nem sabia ao certo, dos fenômenos da natureza.
Quelé analisava o comportamento dos animais, sabia que quando o urutau pia à noite, no campo, iria chover. Escutava o vento, “o do noroeste mandava na nossa chuva”. Já o vento sul, traz o frio. Certa madrugada me disse que na hora em que a lua “caísse no horizonte”, choveria se o vento noroeste continuasse soprando na mesma velocidade. A precisão desta previsão eu constatei.
Um dia me disse: Você pode regar uma planta diariamente por um mês, bastará apenas uma hora de chuva para ela ficar viçosa.A água da chuva tem uma “potassa” que Nosso Senhor põe nela, que nenhuma outra água tem. É verdade!
A freqüência à fogueira foi aumentando, ela era generosa como Sol, aquecia qualquer tipo de gente que lá chegasse.
Em roda dela conviviam playboys chegados de corridas de automóveis na Ribeirânia, policiais montados à cavalo que faziam a ronda. Ás vezes um ou outro ladrão que vinha acender um cigarro, garotos e garotas de todas as cores e tons que vinham fumar cigarros menos ortodoxos. Quelé permitia, até gostava do cheiro da fumaça, ele só não admitia que se cuspisse ou urinasse no fogo, aí ficava bravo, dizia que o fogo era coisa de Deus e aquilo era um grande desrespeito.
Passaram por lá grandes violonistas que espalhavam notas musicais pelas madrugadas. Ás vezes o deputado João Cunha declamava Fernando Pessoa junto ao fogo. Era bonito!
Sempre havia o rádio de um carro sintonizado no programa do Big-Boy na rádio Mundial.Um dia, o locutor, que só tocava rock, anunciou que ia tocar uma música nova de Gilberto Gil. Era o Expresso 2222. Quando aquele violão maravilhoso invadiu a quietude da noite, fez-se silêncio completo. Todos escutavam encantados. Quando terminou, Quelé exclamou: “Êta, baiano safado!” Como ele sabia?
Discutia-se religião também, o Lau Baptista e o Toninho Achê filiaram-se ao movimento religioso ”Casa de Cristo” e tentavam converter os outros a esta religião.
Discutia-se política também, mais reservadamente, pois os tempos eram bicudos.
Outro que sempre estava por lá era o futuro médico Rubens Sérgio Achê, cuja tia, Dona Faride morava na esquina da rua Sete de Setembro.
Quelé não tinha instrução formal, mas era um homem sábio, sabia escutar, e às vezes emitia opiniões perspicazes.
No fim da vida, quando já nem se levantava mais, vivia de favor na casa de um cunhado que o acolheu. A pequena aposentadoria que o deputado João Cunha lhe arranjou mal dava para comprar os remédios que precisava tomar. Alguns poucos amigos do tempo da fogueira o ajudavam com algum dinheiro.
No lugar onde ele acendia seu fogo, hoje é a sala de TV da casa lá construída. Sob as cinzas da fogueira sepultou-se o bom uso de conversar.
“Lá em casa a roda já mudou
Que a moda muda
A roda é triste
A roda é muda
Em volta lá da televisão”

(Chico Buarque)
Texto de Sergio Von Gal publicado no Guia Sul de Ribeirão - Edição Dez 2008

Um comentário:

  1. que gostoso ler este texto! tenho minhas orquideas e com a chuva ficam enraizadas ,mas se molhar com agua da torneira morrem encharcadas!

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