quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Quarta-feira Muito Quente

Nada melhor do que ter bons amigos. Hoje, recebi por e-mail de um grande amigo, um texto do Albert Camus, acompanhado de uma foto do ilustre escritor de O Estrangeiro e ainda, com uma nota do tradutor. Por favor, desfrutem deste belo presente do meu amigo Luiz Augusto Michelazzo.



Salamano e o cão
Albert Camus
Tradução de Luiz Augusto Michelazzo
Ao subir, pela escada escura, topei com o velho Salamano, meu vizinho de andar. Ele estava com seu cão. Há oito anos os vejo juntos. O cão, um spaniel, tem uma doença de pele, acho que sarna, que o fez perder quase todos os pelos e que o cobriu de placas e crostas escuras. Por força de viver com ele, os dois sós num pequeno quarto, o velho Salamano acabou por se parecer com ele. Ele tem crostas avermelhadas no rosto e seu cabelo amarelado é escasso. O cão, esse pegou do seu patrão um tipo de postura encurvada, o focinho adiante e o rabo abaixado. Eles têm o ar da mesma raça e portanto eles se detestam. Duas vezes por dia, às onze e às seis horas, o velho leva seu cão para passear. Há oito anos eles não mudam o itinerário. Pode-se vê-los ao longo da rue de Lyon, o cachorro puxando o homem, até que o velho Salamano tropece. Então ele bate no cachorro e o xinga. O cão abaixa de pavor e se deixa arrastar. Nesse momento fica o velho a lhe puxar. Quando o cão esquece, ele volta a arrastar novamente seu dono e é de novo espancado e xingado. Então ficam os dois na calçada se olhando, o cão com terror e o homem com ódio. É assim todos os dias. Quando o cão vai urinar, o velho não lhe dá tempo e o puxa, o spainel espalhando atrás de si um rasto de pequenas gotas. Se por acaso o cão faz dentro do quarto, então apanha outra vez. Isso dura oito anos. Celeste diz sempre “é uma desgraça”, mas no fundo, ninguém sabe. Quando o encontrei na escada, Salamano estava xingando o cão. Ele dizia: “Canalha! Carniça!” e o cão gemia. Eu disse: “Bom dia”, mas o velho xingou outra vez. Então eu lhe perguntei o que o cão havia feito. Ele não me respondeu. Ele disse somente: “Canalha! Carniça!”. Eu o vi , inclinado sobre o cão, arrumando qualquer coisa na sua coleira. Falei mais forte. Então sem se voltar, ele me respondeu com um tipo de raiva disfarçada: “É sempre assim”. Depois partiu puxando o animal que se deixava arrastar sobre as quatro patas, gemendo.
......
De longe percebi na direção da porta o velho Salamano que tinha um ar agitado. Quando nos aproximamos notei que ele não tinha seu cão. Ele olhou para todos os lados, voltou-se sobre si mesmo, tentando furar o escuro do corredor, murmurando palavras desconexas e voltando a inspecionar a rua com seus pequenos olhos vermelhos. Quando Raymond lhe perguntou o que se passava, ele não respondeu de pronto. Eu tinha vagamente entendido que ele murmurava “Canalha! Carniça!” e ele continuou a se inquietar. Perguntei onde estava o cachorro. Ele me respondeu bruscamente que havia fugido. E depois, de sopetão, ele falou com inconstância : “Eu o levei ao Campo de Manobras, como de costume. Estava lotado em volta das barracas dos feirantes. Eu parei para olhar “o Rei da Fuga” e quando quis voltar ele não estava mais lá. Há algum tempo eu queria comprar uma coleira maior. Mas eu jamais acreditei que essa carniça pudesse fugir assim. Raymond lhe explicou então que o cão poderia ter se extraviado mas que ele iria voltar. Ele citou exemplos de cães que haviam percorrido dezenas de quilômetros para voltar a seus donos. Apesar disso o velho mantinha o ar agitado. “Mas eles o pegarão, vocês entendem. Se ainda alguém o recolhesse. Mas isso não é possível, ele enoja todo mundo com suas crostas. A carrocinha o pegará, é certo.” Eu lhe disse que ele devia ir ao canil municipal e que o devolveriam mediante o pagamento de algumas taxas. Ele me perguntou se essas taxas eram elevadas. Eu não sabia. Então ele se encolerizou: “Dar dinheiro por essa carniça! Ah, ele pode bem é se arrebentar!”. E se meteu a xingar. Raymond riu e entrou no prédio. Eu o segui e nos separamos no corredor do andar. Pouco depois ouvi os passos do velho e ele bateu à minha porta. Quando abri ele ficou um momento na soleira e disse: “Desculpe-me, desculpe-me.” Convidei-o a entrar mas ele não quis. Ele olhou o bico dos seus sapatos e as mãos cheias de crostas e trêmulas. Sem me olhar no rosto, perguntou: “Eles não vão prendê-lo, diga senhor Mersault? Eles vão devolvê-lo. O que vai acontecer?” Eu lhe disse que a prefeitura deixava os cães três dias à disposição dos donos e que, em seguida, eles faziam o que, bom, ele sabia. Ele me olhou em silêncio. Depois me disse: “Bonsoir.” Ele fechou sua porta e eu o ouvi ir e vir. Sua cama rangeu. E no bizarro barulhinho que atravessou a divisória, percebi que chorava. Não sei porque pensei em mamãe. Mas eu tinha que acordar cedo no dia seguinte. Não tinha fome e deitei- sem jantar.
Nota do tradutor
Neste trecho de O Estrangeiro, um livrinho de 180 páginas, apontado como um dos patrimônios literários da humanidade, Albert Camus – Prêmio Nobel de Literatura em 1957 – faz um instantâneo da complexidade das relações humanas, cujos sentimentos alternam do amor ao ódio, milhares de vezes por dia.
Muitas vezes torna-se quase impossível entender a essência de certas relações abertamente hostis, odiosas e destrutivas e do porquê seguem em frente, sem se perceber os traços de afeto embutido nelas. Camus coloca a questão com mestria, de passagem, nesse trecho de O Estrangeiro, emblematicamente por meio de um velho solitário e um cão não menos miserável. Trata-se de uma das figuras literárias preferidas do meu irmão Paulo – que é psicólogo, analista – citada sempre para explicar a densidade das variações entre amor e ódio e ainda, a tardia percepção desses amores sofridos, encouraçados em espessa camada de rancor, ira e repugnância. Afeto escondido, muita vezes só tornado consciente com o desaparecimento do objeto do ódio. Mas O Estrangeiro, como foi dito, trata de Salamano e seu cão só de passagem, focando sua atenção maior à história do jovem Mersault, a partir da morte de sua mãe e os trágicos acontecimentos que se sucedem numa tarde excepcionalmente luminosa e quente no litoral argelino. É um mergulho profundo na alma humana, magistralmente bem descrito, e uma crítica contundente à justiça burguesa.
Trata-se de um livro imperdível, que deve ser lido – e relido, por quem já o fez.
Um dos maiores nomes da literatura contemporânea, Camus, francês nascido em Argel, é dono de vasta obra – romances, peças de teatro, ensaios e artigos. Outro pequeno livro seu, A Peste, colocar-se-ia igualmente entre as obras antológicas da literatura mundial. Transformado em filme, previsivelmente ficou muito aquém da obra literária, quase um esboço.
Homem de esquerda, Camus trabalhou na clandestinidade contra a ocupação nazista da Europa – escrevia para o jornal Combat – e em seguida pelo fim do colonialismo francês na Argélia. Morreu na França aos 47 anos, em 1960. A tradução do referido trecho teve por original a edição de bolso de L’étranger, da Editions Gallimard, de 1957, e como objetivo o puro prazer intelectual.

ILUMINAÇÃO


Neurobiol deixa seu cérebro iluminado. Nos anos de 1940, Neurobiol prometia melhorar a capacidade do cérebro em propaganda estampada nas páginas da Revista O Cruzeiro.  Hoje, 60 anos depois, percebemos que os problemas com o cérebro continuam iguais, as propagandas continuam prometendo iluminação, mas agora, em muito maior quantidade e com opções de muitas marcas e fórmulas milagrosos. 
O esquecimento é algo que nos acompanha a vida inteira.  Acredito que esquecemos o que não é interessante o suficiente para ocupar um lugar de destaque no cérebro. Você já ouviu falar de alguém apaixonado que esqueceu de ir buscar a namorada na hora do encontro? Ou então, de um funcionário que não foi receber o salário do mês porque esqueceu? Nem eu. Mas,  acho que por convenção, quando chegamos aos 40 anos começamos a nos preocupar com a falta de memória, aos 50 anos a preocupação se agrava e, depois dos 60 anos a gente esquece. 
Por isso, Neurobiol e todos os lubrificantes para o cerébro que forem lançados sempre terão um público novo sedento em resolver o seu problema de memória.

QUINDINS NA PORTARIA

Martha Medeiros
Estava lendo o novo livro do Paulo Hecker Filho, Fidelidades, onde, numa de suas prosas poéticas, ele conta que, antigamente, deixava bilhetes, livros e quindins na portaria do prédio de Mário Quintana: "Para estar ao lado sem pesar com a presença". Há outras histórias e poemas interessantes no livro, mas me detive nesta frase porque não pesar aos outros com nossa presença é um raro estalo de sensibilidade.
Para a maioria das pessoas, isso que chamo de um raro estalo de sensibilidade tem outro nome: frescura.
Afinal, todo mundo gosta de carinho, todo mundo quer ser visitado, ninguém pesa com sua presença num mundo já tão individualista e solitário.
Ah, pesa. Até mesmo uma relação íntima exige certos cuidados.
Eu bato na porta antes de entrar no quarto das minhas filhas e na de meu próprio quarto, se sei que está ocupado.
Eu pergunto para minha mãe se ela está livre antes de prosseguir com uma conversa por telefone.
Eu não faço visitas inesperadas a ninguém, a não ser em caso de urgência, mas até minhas urgências tive a sorte de que fossem delicadas.
Pessoas não ficam sentadas em seus sofás aguardando a chegada do Messias, o que dirá a do vizinho.
Pessoas estão jantando.
Pessoas estão preocupadas.
Pessoas estão com o seu blusão preferido, aquele meio sujo e rasgado, que elas só usam quando ninguém está vendo.
Pessoas estão chorando.
Pessoas estão assistindo a seu programa de tevê favorito.
Pessoas estão se amando.
Avise que está a caminho. Frescura, jura? Então tá, frescura, que seja.
Adoro e-mails justamente porque são sempre bem-vindos, e posso retribuí-los, sabendo que nada interromperei do lado de lá.
Sem falar que encurtam o caminho para a intimidade.
Dizemos pelo computador coisas que, face a face, seriam mais trabalhosas.
Por não ser ao vivo, perde o caráter afetivo?
Nem se discute que o encontro é sagrado.
Mas é possível estar ao lado de quem a gente gosta por outros meios.
Quando leio um livro indicado por uma amiga, fico mais próxima dela.
Quando mando flores, vou junto com o cartão.
Já visitei um pequeno lugarejo só para sentir o impacto que uma pessoa querida havia sentido, anos antes. Também é estar junto.