segunda-feira, 3 de maio de 2010

Navegar é lição de sempre

Devo confessar que nasci em Olímpia e sou neta de Ulisses. Vem daí meu gosto por viagens, dentro e fora de mim.
Na minha meninice havia no quintal da minha casa, de terra natural, cajueiro, jabuticabeira, pé de jambo que me acolhiam em minhas leituras, horas a fio sem que o sonhar acordado fosse interrompido por outros sons que não fossem de passarinhos. Ali  viajei muito, da minha Ítaca para terras distantes, conheci pessoas de outras eras que faziam parar os relógios e ensinavam que a ficção é de sempre, presente a cada olhar para a folha de papel.
Mas outras “grandes” viagens se fizeram na adolescência. Um grupo de meninas ousadas elegia Ribeirão Preto como centro de referência. E, vindas de ônibus, escolhíamos um dia das férias para a grande viagem, não mais pelo Mediterrâneo, mas para outro rio que, ainda não sabia, seria o novo “rio da minha aldeia”.
Chegar era uma festa e dentro de mim, de nós, estávamos no centro do mundo. Andávamos pelas ruas e o pouco dinheiro que tínhamos era suficiente para os desejos de consumo àquela época. Havia uma Rosifini para nossos pés, uma Matriz para o alto, onde cabiam três pedidos, promessas válidas só para o momento de elevação. Mas o grande momento era a Praça XV com seus prédios “modernos”, compatíveis com as ilustrações de livros, a própria praça, seu verde e músicos tocando.
As Lojas Americanas anunciavam novos tempos e fascinavam pela exposição tão próxima  de nós. Aparentemente era possível tocar sem comprar, como se tudo estivesse ali gratuitamente, despertando o desejo de ter. O almoço, no mesmo espaço, era regado a suco, hamburguer, de formatos variados, hula-hula, e aquele serviço já indicava, sem que déssemos conta, que, em qualquer medida, um novo modo de ser entrava por todos os poros.
Ao final do dia, o regresso a Ítaca ia pontuado de sonhos sonhados, acordada. Aquela música da cidade, a fisionomia urbana eram o
grande “recado do morro”, “a cidade invisível” a qual Ítalo Calvino, ao traduzir sua memória, empresta-me em busca da palavra para nomear. Ali eu instalaria minha alma definitivamente e, para sempre, ribeirãopretana.
Voltei e tornei a voltar e a voltar para viagens “de longo alcance”, até o dia em que minha família, por opções de trabalho, veio de “mala e cuia” para minha “matria”, minha nova pátria-mãe. Não abandonei Ítaca, mas, como Ulisses, meu destino é navegar. Aportei no rio da minha aldeia, meu Ribeirão, e entre pessoas, junto a Pessoa, o contradigo, sabendo que negar é também um modo de afirmar: “Que graça ter trazido o passado roubado na algibeira!”
Texto de Marisa Giannecchini G. de Souza publicado no Guia Centro de Ribeirão - Edição Jun 2008

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