domingo, 21 de junho de 2009

Faz de Conta

Era um tempo de faz de conta. Brincadeira de criança, pipa, carrinho de rolemã, pião, bolinha de gude. Fantasia de casinha, boneca; escola de mentirinha com caderno, lição e nota.
Era tempo de sol a pino, rua cheia de árvore enfileiradinha e casa de porta aberta com lanche da tarde: pão, manteiga, café com leite. À tarde, hora do banho pra tirar o encardido do pé e a fileira de suor e terra do pescoço. Sopa na janta, alguém contava uma história, ave-maria e cama.
O universo cabia no quarteirão lá de casa: cem metros de rua São José, entre Rui Barbosa e Campos Sales. Era ali que a gente inventava a vida do jeito que queria. Nesse tempo não havia inimigos; o perigo andava longe, lá pelas bandas da cidade grande, em notícia de jornal. O Filósofo, por exemplo, bebia até cair, mas tinha uma biblioteca na cabeça e uma doçura imensa no coração. Andarilho, escolheu nosso mundinho para se instalar e vivia nos contando histórias. Um dia, apaixonou-se pelos olhos azuis da minha irmã, pra quem cantava emocionado “Boneca Cobiçada”.
Assim como ele, alguns personagens deste tempo grudaram-se na memória como num Amarcord particular. O dono do bar da esquina, um enorme árabe cuja unha do dedo mindinho, de tamanho descomunal, exercia sobre nós um verdadeiro fascínio. A cabeleireira do bairro, na época a mais conhecida da cidade, bondosa e simpática, toureando uma clientela de finíssimo trato; o moço que perdera o juízo, encostado na porta da rua, de pijama, cabeça baixa entre as mãos, impassível, eterno, sem tempo.
Na esquina onde hoje tem uma locadora de vídeo morava o médico de família – cabeleira grisalha e sorriso dentuço, meio manco, cultivando em seu bonito jardim aquelas florzinhas azuis que grudávamos na roupa. E claro, na outra esquina, a enigmática viúva rica e seu impecável motorista de cabelos de brilhantina. Boquiabertos, soubemos um dia que aquela torre que enfeitava a casa dela, abrigava um elevador. Um luxo cinematográfico para a época!
Havia o mecânico meio maluco que morava nos fundos de um longo corredor. Oficialmente arrumava bicicletas, mas seu grande e inacabado projeto era um fantástico automóvel que ele construía com sucatas. O espantoso bólido – objeto de nossa mais pura fascinação – repousava no quintal em meio a dezenas de galinhas que cacarejavam voejando sobre o veículo como se fosse um poleiro. Aos domingos, o velho e barrigudo mecânico-inventor envergava a eterna camiseta suja, instalava uma poltrona no carro e lá ia rua abaixo, dirigindo a geringonça sob o aplauso e a euforia da meninada.
Outra figura de doce lembrança era o quitandeiro italiano que morava com a família nos fundos da quitanda. Entre as verduras frescas, exibia preciosidades só possíveis neste tempo de faz de conta. Como bom “oriundi”, o homem deliciava a freguesia com enormes queijos parmesão e azeitonas pretas do tamanho de um limão.
Inesquecíveis também, as entiotadeiras. Longilíneas e silenciosas, compunham uma estranha coreografia na pequena sala que aguardava os fregueses. Lezes e organdís eram engomados até os vestidos pararem de pé, espalhados pelo chão como personagens de um conto de fadas. O cheiro da goma, o vapor subindo da mesa, o barulhinho tsiiiiii dos pesados ferros a carvão completavam a paisagem da casa apertada, de porta na rua.
O quarteirão inteiro era formado por casas parecidas -- graciosos bangalows com um pequeno jardim, varanda e janelas de madeira. O rico proprietário de todas as nossas casas era um solteirão que morava com as irmãs num elegante palacete, com vestígios vagamente europeus. Ali, depois do jardim e da escadaria de mármore, imaginávamos segredos insondáveis que tentávamos desvendar com as carinhas grudadas no gradil da fachada.
Nos dias de tempestade a água descia enfurecida num rio que cobria toda a São José e arrastava o que havia pela frente. Cadeiras, brinquedos e, às vezes, automóveis passavam navegando por nossa animada platéia que das varandas aplaudia o espetáculo ou, mais ousada, se metia na corredeira.
A igreja com seu relógio e suas badaladas não guarda mais os afrescos que enfeitavam as paredes. Com eles se foi um tempo de inocência, procissões, missal e mantilha. Foram-se também os anjos de cetim que envergávamos todos os anos para coroar Nossa Senhora.
Com exceção de um ou outro sobrevivente, não há mais no quarteirão nenhum vestígio físico deste tempo. A casa onde nasci transformou-se numa ótica e os edifícios imensos sombreiam todas as calçadas. Mas dentro da gente as paisagens não mudam. Estarão sempre lá o mecânico inventor, o fruteiro italiano, as passadeiras e o moço de pijama, todos personagens do nosso pequeno arsenal de certezas. No tempo do faz de conta, foram eles as referências territoriais e afetivas que nos guiavam diariamente em direção ao futuro.
Texto de Carmen Cagno publicado no Guia Centro de Ribeirão - Edição Março 07

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