sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Na região da Rua Lafaiete

Cauim, Comodoro e Mirage são salas de cinemas inesquecíveis de uma Ribeirão inesquecível .
Jamais pensei que um dia fosse agradecer o regime militar, mas sou obrigado a reconhecer: não fosse ele e eu não teria uma iniciação tão rica no cinema. Mas calma lá: não apoiei e nem apoiaria os generais e que tais que, entre 1964 e 1985, mandaram neste país. As loas a que me refiro constam do abrandamento dessa ditadura, também chamada de abertura política, conduzida, entre outros, pelo general Golbery do Couto e Silva, a partir do final da década de 70.
No caso do cinema, essa liberalização permitiu com que filmes até então expurgados tivessem suas exibições autorizadas entre nós. Foi tudo de uma só vez e entre 1980 a 1983. Ribeirão Preto estava nessa seara e o Cineclube Cauim, recém-criado no fim dos anos 70, resvalava como que magia, ao surgir justamente nesse ambiente digamos otimista. Na verdade, se o general João Batista de Figueiredo resolvesse endurecer, ao invés de seguir a toada da liberalização, dificilmente o Cauim viria à luz.
Bom, como estamos aqui para discorrer sobre ícones da área central de Ribeirão, o Cauim, como epicentro dessa família de ícones, nasceu encravado no predinho da Rua Lafaiete, entre as ruas Amador Bueno e Tibiriçá, onde funcionou - por pouco tempo - o Cine Windsor.
Na verdade, o Fernando Kaxassa e outros criadores do cineclube ajudaram a manter aquele trecho da cidade como um pólo de excelência cinematográfica. É certo que o Cauim era o grande exibidor de produções até então proibidas como “Z” e “Sessão Especial de Justiça”, do grego Costa Gravas, ou “Pasqualino Sette Belezas”, da italiana Liliana Cavani - filme que vi apenas uma vez, mas não me sai da memória até hoje, com o Giancarlo Gianini estupendo como fugitivo de nazistas. Mas a menos de uma quadra dali, na Rua Álvares Cabral, era o Comodoro quem dava o troco: não nasceu para exibir filmes de arte, apostou no popular menos popularesco e nos saudou com “O Império dos Sentidos”, de Nagisa Oshima, aquele do casal de japoneses que transa o tempo inteiro.
O Comodoro - ainda hoje de pé, com exibições de fitas pornô em telinha - brilhou no cinemão popular. E, concorrente dele, e nesse mesmo trecho do Centrão de Ribeirão Preto, ficava o Mirage, na Rua Lafaiete, onde hoje é a sede do projeto de teatro Ribeirão em Cena, criado e tocado por Gilson Filho. Essa sala também não foi criada para filmes de arte - até porque o Cauim dava conta do recado -, mas provocou filas e mais filas com o John Travolta e a Olivia Newton John no musical “Grease”.
Onde funcionava o Windsor e o Cauim hoje está uma igreja que abre de vez em quando. O Comodoro, como disse, sobrevive como pode. E o Gilson segue seu projeto de teatro no antigo Mirage. Essa região da Lafaiete não virou decadência, como várias outras regiões do Centro, graças a dois grupos educacionais que mantêm escolas na vizinhança. Trouxe a juventude de volta, embora os gostos e as tecnologias de hoje são outras.
O estudante de hoje até podem assistir “Z”, mas na tela do notebook, e não dentro de uma sala quente como a do Windsor, em que era preciso torcer para ninguém abrir a cortina vermelha que separava a sala de exibição da sala de espera. Bom, os ruídos eram inevitáveis. Mas diante do prazer de compartilhar daqueles anos tão mágicos do cinema, um calorzinho e um ruído nem incomodavam.
Texto de Delcy Mac Cruz publicado no Guia Centro de Ribeirão - Edição Julho 08

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